"Que te devolvam a alma homem do nosso tempo. Pede isso a Deus ou às coisas que acreditas: à terra, às águas, à noite desmedida. Uiva se quiseres, ao teu próprio ventre se é ele quem comanda a tua vida, não importa... Pede à mulher, àquela que foi noiva, à que se fez amiga. Abre a tua boca, ulula, pede à chuva. Ruge como se tivesses no peito uma enorme ferida, escancara a tua boca, regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA." (Hilda Hilst)



31/10/2011

Feliz dia das bruxas! Minha homenagem à mulher selvagem em cada um de nós...





As bruxas, mulheres que se dedicavam à fabricação de remédios e unguentos à base de ervas, que cultuavam a fertilidade da terra, que honravam as forças da Terra, da Água, do Fogo e do Ar, e que compreendiam os ciclos como necessários à renovação da vida, foram queimadas em fogueiras nas quais também sacrificavam-se os gatos, animais associados ao feminino e seus mistérios, e com isso os ratos proliferaram... O resultado dessa crueldade foi a peste bubônica, e a ferida psíquica que apartou o matriarcado do patriarcado, ao invés de integrá-los amorosamente, pelo caminho do coração, impulsionando o nosso desenvolvimento em direção à alteridade, à intreração criativa entre as diferenças, entre as polaridades.
Mas nem sempre foi assim... Como escrevo no meu livro Vol VI: Amor, Sexualidade, o Sagrado e a Arteterapia, no capítulo: "A Prostituta Sagrada: o êxtase e o matrimônio interior":
"De acordo com Harding (1985), entre tribos ancestrais, eram feitos rituais à lua e ao seu poder fertilizador. Nesses rituais, cabia às mulheres “o cuidado com o suprimento da água e a guarda da chama sagrada, ou fogo sagrado, que representa a luz da lua e que não se pode permitir que se apague”. (p. 176-177). As sacerdotisas da lua “recebiam a energia fertilizante da divindade em suas próprias pessoas, como mulheres, sendo esta uma função efetuada para o benefício de toda a tribo”. (p. 177). Elas eram chamadas de virgens, pois não pertenciam a nenhum homem, não se casavam, e “em muitos lugares essas sacerdotisas eram prostitutas sagradas, que se davam a estranhos e aos fiéis adoradores da deusa”. (p. 182). (...)
Segundo Harding (1985), a prostituição sagrada era praticada principalmente pelas mulheres da realeza da Grécia e Ásia Menor, e na Babilônia “as filhas de famílias nobres se prostituíam no templo de Anaíta, a deusa lua do mazdeísmo, dedicando-lhes os primeiros frutos de sua feminilidade.” (p. 186). A autora também ressalta que “os ritos sexuais das bruxas tinham o significado de uma união com o poder divino, mas também era um rito mágico para assegurar a fertilidade (...) esses ritos correspondem aos que eram praticados nos antigos mistérios da deusa Lua”. (p. 192).

Harding (1985) comenta que os homens eram iniciados nos templos da deusa Lua pelas sacerdotisas, que incorporando a deusa em si, ritualizavam um hieros gamos (casamento sagrado), como “um sacramento de união com a natureza divina e feminina e também um ritual para a renovação de seus poderes de fertilidade.” (p. 193). Da mesma forma, também era desejável que as mulheres, pelo menos uma única vez na vida, tivessem a experiência de "dar-se não a um homem em particular, por amor a ele, isto é, por razões pessoais, mas à deusa, a seu próprio instinto, ao princípio Eros que nela existia. No hieros gamos, no matrimônio santo, não importava quem pudesse ser o homem, cuidava-se sim que ele não fosse o homem escolhido. Precisava ser um estranho. Não importava sequer o tipo de experiência que a mulher poderia ter. (...) Para a mulher, o significado da experiência devia residir na sua submissão ao instinto, não importando de que forma a experiência lhe acontecesse." (HARDING, 1985, p. 197).

Segundo Stein (1978), como no mundo atual não existem mais rituais que permitam essa vivência de forma integrada, possibilitando o amadurecimento sexual da mulher, sendo que mesmo a vivência da liberação sexual não a liberta dos conflitos que envolvem essa questão em sua psique, um dos caminhos para a mulher seria a aceitação de sua sexualidade indiferenciada sem se sentir vulgar, mas no sentido de ser tão livre quanto o homem “para permitir que as imagens sexuais penetrem na consciência”, e assim o seu animus “deixará de exigir que seja sempre aberta, pronta para o relacionamento e o amor, começando a aceitar o fato de que ela pode ser imaginativamente criativa em outras áreas além do relacionamento humano e ainda assim ser feminina”. (p. 147).
O poema de Bruna Lombardi mostra bem como essa “mulher selvagem”, “bruxa” ou “prostituta sagrada”, apesar de ter sido abafada, reprimida e condenada a partir da cisão do matriarcado com o patriarcado, bem como queimada viva na fogueira da Inquisição, ainda pode ser encontrada no âmago da mulher de hoje:

Ela é uma mulher que goza
celestial sublime
isso a torna perigosa
e você não pode nada contra o crime
dela ser uma mulher que goza
você pode persegui-la, ameaçá-la
tachá-la, matá-la se quiser
retalhar seu corpo, deixá-lo exposto
pra servir de exemplo.
É inútil. Ela agora pode resistir
ao mais feroz dos tempos
à ira, ao pior julgamento
repara, ela renasce e brota
nova rosa
Atravessou a história
foi queimada viva, acusada,
desceu ao fundo dos infernos
e já não teme nada
retorna inteira,
maior, mais larga
absolutamente poderosa.

Com isso, poderemos nos abrir para vivenciar relacionamentos entre dois seres humanos inteiros, não mais concebidos como “duas metades de uma mesma laranja” que se unem, o que dá margem à co-dependência que mata a criatividade e o potencial transformador do relacionamento conjugal, mas compreendendo que os parceiros podem auxiliar-se mutuamente a ter uma vida mais rica e criativa, e um contato mais profundo com a sua própria humanidade. Como bem coloca Stein (1978, p. 157): “A essência da criatividade, que pode manifestar-se tanto no relacionamento e no desenvolvimento humano como no trabalho criativo, é sempre o amor”." (BERNARDO, 2011, p. 209 - 213).

Feliz dia das bruxas, com muito amor... pela natureza, pela energia pulsante em cada átomo de vida, pela nossa natureza humano-divina!

(As colagens desse post são detalhes da colagem que fiz no meu piano).




2 comentários:

Marcia Accioly - Recife/PE disse...

Querida Patrícia,

Que delícia de texto! E ele me despertou o desejo de voltar a estudar o feminino- tão singular e plural! Obrigada pela oportunidade de me recolocar neste caminho.
Bjs

Bennie Bishop disse...

Lindo texto, como sempre você tem o dom de contar a história de uma maneira viva e verdadeira. Já tinha lido algo sobre alguns cultos antigos, da era pagã, mas os ventos da mudança surgiram para confundir e transformar, deve fazer parte do nosso aprendizado.