"Que te devolvam a alma homem do nosso tempo. Pede isso a Deus ou às coisas que acreditas: à terra, às águas, à noite desmedida. Uiva se quiseres, ao teu próprio ventre se é ele quem comanda a tua vida, não importa... Pede à mulher, àquela que foi noiva, à que se fez amiga. Abre a tua boca, ulula, pede à chuva. Ruge como se tivesses no peito uma enorme ferida, escancara a tua boca, regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA." (Hilda Hilst)



25/11/2010

A teia da aranha (e a Dimensão dos Sonhos)


A teia de aranha tem um significado muito especial para mim, já que as aranhas estão simbolicamente relacionadas à criatividade e às histórias, que sempre estiveram presentes em minha vida... E não é que no outro dia, ao entrar no meu carro de manhã para ir ao consultório, me deparo com uma teia de aranha (com a aranha em seu centro) confeccionada provavelmente na penumbra da noite, belamente tecida como uma mandala (dá para ver bem a sua teia na foto acima)!!! Eu ia dirigindo (pois só vi a aranha depois que já estava com o carro andando), com a teia bem ao meu lado, perto do câmbio de marchas, e conversando com a aranha:
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-Querida aranha, a sua teia é linda, e você sabe que admiro as aranhas por isso, pelo seu belo trabalho e pelo que ele simboliza: a "teia da vida" e de nossas relações... mas por favor, fique aí, não pule em mim, e me perdoe porque eu vou precisar tirar você e a sua teia do meu carro quando eu chegar ao consultório!
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(E é claro que antes de retirar a aranha, me desculpando por desmanchar a sua primorosa teia, eu a fotografei - por sorte eu estava com a máquina em minha bolsa, pois era dia de curso e eu sempre levo a máquina para tirar fotos dos trabalhos dos alunos).

Imaginem a cena!!! Se meu filho estivesse no carro, ele diria (como tantas vezes o fez diante de situações assim, quando eu converso com plantas e até quando chego a pedir desculpas a uma porta por batê-la muito forte sem querer): "Mãe, conversando com uma aranha? De que mundo você é?!?"
Mas ao mesmo tempo, que bênção ter esse olhar para o mundo, e saborear momentos como esse: uma aranha fez umna teia em meu carro, uma mandala viva cheia de significados, a Natureza dialogando comigo! Me senti honrada por isso...

Tem um conto africano que diz que foi uma aranha que trouxe o baú de hostórias do céu para a terra, compartilhando essas histórias com os homens... O nome dessa aranha (que no conto é do sexo masculino) é Anansi, que foi escolhido por Deus para receber esse baú depois de fazer o que Deus lhe ordenau, tarefas consideradas impossíveis de serem realizadas (como as 4 tarefas no conto Eros e Psiqué), mas que foram cumpridas com a ajuda da aranha esposa de Anansi, pois era ela - a sabedoria do Feminino - quem lhe inspirava sobre como deveria proceder para conseguir realizá-las (na versão do livro ao lado também são 4 tarefas). Em algumas versões, ele vivia como um humano antes de se transformar em aranha. As tarefas pedidas também variam nas várias versões.
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Segundo Sams (Cartas Xamânicas), foi a aranha quem trouxe as letras e com elas formou o alfabeto, para que os homens pudessem escrever as suas histórias. Encontramos ainda nas culturas indígenas a idéia do filtro dos sonhos, inspirado nas teias das aranhas, mandala de cura e que nos coloca em contato com a "Dimensão dos Sonhos", onde dormitam as possibilidades ainda não trazidas para a realidade...

A teia de aranha relaciona-se tembém, pois todo símbolo tem a sua face e dorso, às ilusões com as quais revestimos a realidade enquanto não somos capazes de enxergá-la para além do visível (o que é um dom dos visionários). Por isso a deusa hindu Maya tece véus que a encobrem, para que aguentemos olhar para ela sem nos despedaçarmos pela visão de sua magnitude. Mas ao mesmo tempo, é uma deusa ligada ao Feminino e à matéria: a mulher tece em seu útero as vestes que revestirá, em forma de um corpo, a alma de um novo ser!
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Como coloco no meu livro II: Mitologia Indígena e Arteterapia, "a atividade de tecer é em várias culturas um atributo do feminino, relacionando-se com a criação, com o nosso destino, com as histórias que vivenciamos ao longo de nossas vidas (...) De acordo com Chevalier e Gheerbrant (1993), na África do Norte (...) 'o trabalho de tecelagem é um trabalho de criação, um parto. Quando o tecido está pronto o tecelão corta os fios que o prendem ao tear, e ao fazê-lo, pronuncia a fórmula de bênção que diz a parteira ao cortar o cordão umbilical do recém-nascido. Tudo se passa como se a tecelagem traduzisse em linguagem simples uma anatomina misteriosa do homem.'"
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Na mitologia grega, temos as Moîras (tecelãs do destino), e Aracne, transformada em aranha por Atená ao desrespeitar os deuses em um de seus bordados numa competição que insistiu em ter com Atená: o seu bordado tinha uma técnica impecável, mas faltava-lhe a humildade, sem a qual nenhum conhecimento pode transfromar-se em sabedoria, faltava-lhe reconhecer que é o divino em nós que nos faz criar, e saber honrar isso (Jung dia que a criação é um grande mistério, e que os mistérios não se explicam), é através de nossa humilde (a palavra humildade vem de húmus, que é matéria orgânica depositada no solo) humanidade que podemos nos colocar a serviço dos deuses, trazendo um pouco mais de luz, assim, ao mundo através das nossas ações, das nossas criações... Aliás, foi Atená quem ensinou aos homens a arte de bordar.
Encontramos também na mitologia grega o fio de Ariadne, que com ele permitiu que Teseu entrasse e saísse do labirinto (onde estava o minotauro) sem se perder, e o manto tecido de dia e desfeito de noite por Penélope, enquanto esperava pela volta de Ulisses...
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Uma história sobre mulheres tecelãs que merece ser contada aqui com mais detalhes, em outra oportunidade, é a de Sherazade, que tecia com palavras, através de suas histórias, a teia de sua relação com o sultão, curando-o da ferida aberta pela traição através de seu amor e de seus contos...
Segundo Adélia Bezerra de Meneses, que faz uma profunda e sensível análise dessa história, "Sherazade oferece ao sultão uma linguagem, um discurso simbólico que possa atingi-lo, por inteiriçado e crispado que ele estivesse na sua incapacidade afetiva. Ela oferece ao sultão o acesso ao mundo simbólico; oferta-lhe uma linguagem, como queria Lévi-Strauss, "na qual podem exprimir-se estados não formulados e, de outro modo, não formuláveis". "Não é portentoso que na noite 602, o rei Xariar ouça da boca da rainha a sua própria história?", pergunta-se Jorge Luís Borges extasiado.
Sherazade apresenta a Xariar o nível mítico: apresenta-lhe à consciência conflitos que o traumatizaram, bloqueando sua capacidade afetiva, de tal maneira que ele possa lidar com eles. É por isso que ela não expurga de suas narrativas as histórias de adultérios e traições femininas, não omite casos em que as mulheres enganam a seus maridos; ela não faz ao rei uma narrativa "ad usum delphini"; é notável a ausência de censura moral nas suas histórias.
Trata-se aqui, como na psicanálise, (e na cura chamanística), de propiciar uma transformação interior, consistindo numa reorganização estrutural da personalidade: trata-se de recuperar a capacidade amorosa do sultão. Pois bem, Sheherazade, como na transferência, propicia ao sultão que reviva com ela uma experiência afetiva continuada e para isso ela precisava de tempo (a saber: 1001 noites -o tempo de uma terapia?) e assim resgata sua capacidade afetiva (...) Não nos podemos esquecer de que as narrativas de Sheherazade se seguiam às suas noites de amor com o sultão e são suas histórias que lhe facultam a possibilidade de dormir próxima noite com ele. É a narrativa que possibilita o encontro futuro. Já se disse que se Sheherazade tivesse oferecido ao sultão só o seu corpo, ela teria sido executa­da, logo após a primeira noite: foi o que, todas as suas antecessoras fizeram, e todas pereceram. E Sheherazade salva não apenas a si própria e a todas as mulheres em idade de casar do seu povo: ela salva também o sultão: ela o cura de sua ira patológica e assassina, e possibilita a ele uma descendência. A persistir no seu plano cruel e ginecida, o sultão se privaria para sempre de amar, e de filhos. Sheherazade oferece a ele o tempo e, junto com as suas histórias, a História; oferece a ele o tempo, e, junto com ele, as coisas todas que dele precisam para se engendrarem: os filhos, a duração do afeto, a permanência de vínculos, o longo processo (analítico) de uma cura. Sheherazade oferece ao sultão um discurso vivo.
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Resta ainda lembrar do filme "A colcha de retalhos" (quem ainda não assistiu, assista!), em que um grupo de mulheres faz uma colcha de retalhos para a neta de uma delas, que vai se casar, inspirando-se no tema: "Onde mora o amor", e ao fazê-la, cada uma dessas mulheres vai contando a sua história de vida para essa neta, que está ao mesmo tempo recolhendo essas histórias para a sua dissertação de mestrado, sobre o tema: "quando mulheres se reúnem para fazer um trabalho manual, isso é uma espécie de ritual" - e é claro que nesse processo de criação, essas mulheres vão revendo as suas vidas, passando por um processo de transformação!
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Esse filme nos remete a um conto tibetano: "O Quadro de Pano", do qual fiz a interpretação simbólica na minha dissertação de mestrado, para trabalhar a compreensão do processo criativo, e que está no meu quinto livro (A Alquimia nos contos e mitos e a Arteterapia), quando falo da multiplicatio na alquimia, que consiste no efeito reverberante e multiplicador da pedra filosofal (como o milagre da multiplicação dos peixes), mostrando que a vivência de processos criadores, além de nos transformar, se estende para o mundo através de todas as nossas relações, transformando-o também. Nesse conto, uma vivúva tece um quadro em que representa a sua aldeia como gostaria que ela fosse (bela e próspera), e ao final de muitas aventuras, com a ajuda das fadas, toda a aldeia se transforma no quadro tecido pela viúva... Uma versão infantil desse conto está no livro: O Bordado Encantado. _

Sendo assim, com tanta beleza contida no simbolismo da teia da aranha tecelã, em tantas esferas diferentes, como eu poderia deixar de me encantar e de me sentir grata ao Universo por um encontro tão especial, como esse encontro vivido com uma aranha que fez inusitadamente a sua teia em meu carro, durante a noite? A viúva do conto O Quadro de Pano também teceu todo o seu quadro à noite, à luz de uma tocha...
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Se a foto acima se referir mesmo ao Universo, não é impressionante a semelhança entre essa teia e a da aranha no meu carro (bem como a de todas as aranhas que tecem com fios de luz a aurora de uma nova manhã)? Jung explica...

3 comentários:

Rico Mader disse...

E vivam as aranhas!!!
E vivam as teias que tecemos e os miraculosos e invisíveis fios que nos unem, não por acaso, mas como parte de uma trama maior, a trama da Vida.
Abd e Bjs pra vc, sempre!!!

Elenrose Paesante disse...

Patrícia, me perco no seu Blog, fico horas aqui lendo, vendo os vídeos e admirando a sua sensibilidade! um bjo grande

Luiz Cabral disse...

Te agradeço por este post, que me trouxe luz e carinho pela sensibilidade.

Me ajudou, e ajudará!