"Que te devolvam a alma homem do nosso tempo. Pede isso a Deus ou às coisas que acreditas: à terra, às águas, à noite desmedida. Uiva se quiseres, ao teu próprio ventre se é ele quem comanda a tua vida, não importa... Pede à mulher, àquela que foi noiva, à que se fez amiga. Abre a tua boca, ulula, pede à chuva. Ruge como se tivesses no peito uma enorme ferida, escancara a tua boca, regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA." (Hilda Hilst)



28/06/2019

Valter Hugo Mãe - As mais belas coisas do mundo

As mais belas coisas do mundo. 
(Valter Hugo Mãe, no livro Contos de 
cães e maus lobos)


meu avô sempre dizia que o melhor da vida haveria de
ser ainda um mistério e que o importante era seguir procu-
rando. Estar vivo é procurar, explicava. Quase usava lupas
e binóculos
mapas e ferramentade escavação, igual a um
detective cheio de trabalho e talentos. Tinha o ar de um ca-
çador de tesouros e, de todo o modo, os seus olhos reluziam
de uma riqueza profunda. Percebíamos isso no seu abraço.
Eu dizia: dentro do abraço do a
vô. Porque ele se tornava uma
casa inteira e acolhia-nos. Abraçar as
sim, talvez porque sou
magro e ainda pequeno, é par
mim um mistério tremendo.
Eu sei que ele queria chamar a atenção para a importância
de aprender. Explicava sempre que aprender é mudar de con-
duta, fazer melhor. Quem sabe melhor e continua a cometer
o me
smo erro não aprendeu nadaapenas acedeu à informa-
ção
Ele achava que dispomos de informação suficiente para
te
rmos uma conduta mais cuidada. Elogiava insistentemente
o cuidado. Era um detective de interiores, queria dizer, ins
peccionava sobretudo sentimentos. Quando lhe perguntei
po
rquê, ele respondeu que só assim se falavverdadeiramente
ace
rca da felicidadePara estudar o coração das pessoas é pre-
ciso um cuidado cirúrgico. Estava constantemente a pedir-
-me que prestasse atenção. Se prestares atenção vês corações
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e podes tiramedidas à felicidade. Como shouvesse uma fita
métr
ica para isso.
Propunha que desvendasse adivinhas e dilemas. Propunha que desvendasse labirínticas lógicasPrometia-me um
novo li
vro ou um caderno com marcadores amarelos e ver-
melhos, os meus favoritos. Promet
ia que, se eu descobrisse
cada resposta, me daria outro abraço ainda ma
is apertado
e sempre mais amigo. Por melhores que fossem os 
cadernos,
o orgulho que sentia naqueles abraços era a 
vitória. Comecei
por entender que nenhuma vi
tória me gratificava mais do
q
ue descortinar uma resposta e aceder a um abraço. De cada
v
eque a nossa cabeça resolve uproblema aumentamos
de 
tamanho. Podemos chegar a ser gigantes, cheios de lonjuras por dentro, dimensões distintas, paíseinteiros de ideias
e co
isas imaginárias.
Eu queria ser sagaz, ter perspicácia, estar sempre inspi-
rado
O meu avô pedia qunão me desiludisse. Quem se
d
esilude morre por dentro. Dizia: é urgente viver encantadoO encanto é a única cura possível para a inevitável tristezaHavia, às vezes, um momento em que discutíamos a tristeza.
Era fundame
ntal sabermos que aconteceria e quimplicaria
uma força ma
ior.
Um dia, explicou-me, eu passaria a ser capaz de colocar
as minhas próprias questõ
es, ofício mais difícil ainda do que
procurar respost
as. Sozinho, saberia inventar um mistério
até para mim m
esmoComo sefosse o lado de cá e o lado
de lá das co
isas. O lado de cá e o lado de lá do mundoUcristal com emissão de luz para todos os sentidos.
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Aprendi que o dinheiro tem interesse na troca por coisas,
mas não todas. De qua
lquer modo, o meu avô ensinou que
não devemos dar tanta atenção ao preço mas ao valor. Ele
acreditava que faltava ao mundo mais coisas sem preço de
vido ao grande valor que tinham. Na verdade, quanto maior ° valor mais indecente se torna que sejam vendidas. Aquilo
que há de mais valioso deve ser um direito de toda a gente
e distribuído por graça e segundo a necessidade.
Aprendi que uma semente aninhada num bocado de al-
godão húmido pode rebentar num gigantesco pé de feijão.
O meu avô dizia que as sementes eram meninos de pedra que
nasciam por um bocado de água. Como se fossem pedras com
tanta sede que se tornavam capazes de inventar a vida só para
poderem beber.
Aprendi que a minha avó ficou doente e precisou de
morrer.
Por causa de estar muito doente, a avó precisara de morrer
para ficar sossegada. Não lhe poderíamos falar, mas ela seria
um património dentro de nós, uma recordação que a saberia
manter como viva.
Perguntei se o avô não iria entristecer demasiado. A minha
mãe respondeu que sim. Todos sentiríamos uma profunda
tristeza
O meu avô disse-me que teríamos de procurar a fe-
l
icidade daqueles tempos mais difíceisSe esperarmos, um
dia a 
tristeza dá lugar à celebração. Íamos aprender a celebrar
a avó
Mas nunca esperaríamos quietosA quietude é uma cerimónia do pensamento, mas logo é fundamental bulir. Fazer
qualquer coisa.
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Passeávamos a repetir os nomes do que havia no cami-
nho. Como se chamava cada árvore e cada pássaro, como
se distinguiam as tantas flores no jardim da nossa vizinha
solteira. A vizinha cuidava das flores 
à espera que o bom
perfume da vida lhe trouxesse o amor. Gostávamos muito
dela. O meu avô reparava em como ela escolhia sempre pelo
coração. Tinha uma inteligência apenas amorosa. Podia dar
muito erro para as ciências, mas haveria de garantir-lhe a fe-
licidade quando um rapaz casadoiro a descobrisse.
Nesse tempo, o meu avô perguntou-me quais seriam as
coisas mais belas do mundo. Eu não soube o que dizer. Pen-
sei que poderiam ser o fim do sol, o mar, a rebentação no
inverno, a muita chuva, o comportamento dos cristais
a cara
das mulheres, o circo, os cães e os lobos, as casas com chami-
nés. Ele sorriu e quis saber se não haviam de ser a amizade,
o  amor, a honestidade e a generosidade, o ser-se fiel, educado,
oter-se respeito por cada pessoa. Ponderou se o mais belo do
mundo não seria fazer-se o que se sabe e pode para que a vida
de todos seja melhor
.
Pasmei diante do seu conceito de beleza.
Ele incluía os modos de ser, esses ingredientes comple-
xos que compõem a receita do carácter ou da personalidade,
a maneira um pouco inexplicável como somos e sentimos
tudo.
Convenci-me de que as coisas mais belas do mundo se pu-
nham como os mais profundos e urgentes mistérios. Eram
grandemente invisíveis e funcionavam por sinais dúbios que
nos enganavam, devido 
à vergonha ou à matreirice. O que
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sentem as pessoas é quase sempre mascarado. Deve ser corno
colocarem um pano sobre a beleza, para que não se suje ou
não se roube, para que não se gaste ou não se canse.
A beleza, compreendi, é substancialmente o pensamento,
aqu
ilo que inteligentemente aprendemos a pensar. A força
do pensamento haverá de criar coisas incríveis, científicas,
intu
itivas, maravilhosas, profundas, necessárias, movedoras, salvadoras, deslumbrantes ou amigas. Pensar é corno fazer.
Para a beleza é imperioso acreditar. Quem não acredita
não está preparado para ser melhor do que já é. Até para ver
a realidade é importante acreditar. A minha mãe disse que eu
virei um sonhador. Para mudar o mundo, sei bem, é preciso
sonhar acordado
Apenas os que desistiram guardam o sonho
para o tempo de dormir.
Quando fiz dez anos de idade o meu avô precisou de morrerO meu pai levou-me a passear e a pensar. Fornos pensar.
Corno se fôssemos dar nomes aos pássaros e às árvores, ver
as flores da vizinha e distinguir até a composição das pedras.
Mas isso já aprendera e não haveria de esquecer. Eu disse: 
talvez não tenha aprendido nada porque me custa mudar de
conduta, só me apetece chorar, pai
.
O meu pai respondeu que o avô estivera sempre feliz
comigo, mas envelhecera muito, cansara
-se, morrer era só
corno deixar
-se sossegar.
Eu senti que o seu sossego era do tamanho da nossa so-
lidão.
Depois, acrescentei: há urna felicidade para os tempos difíceis. Sei que é importante seguir à sua procura. Não estou
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seguro de ter entendido a beleza, mas prestarei atenção com
todo o cuidado. Jurei acreditar. Acreditei sempre, mesmo
antes de saber o quanto.
Puseram o meu avô debaixo de flores como se fosse solteiro e esperasse pelo amor.
Senti teficado do lado de fora do abraço, como se a casa
tivesse ido embora com um temporal e me pusesse irreme-
diavelmente desabrigado. Eu pensei
fora do abraço do avô.
Levedesenhos para lhe contar uma história pequena. De-
senhei o meu avô passeando, depois, sentado ao pé do riacho
e também de braço levantado a tentar ser
vir de árvore para
um pintassilgo. Desenhei o meu avô a ler livros em voz alta
e a repetir que a sopa é redonda como o sol e ilumina a nossa
fome. Desenhei-nos a rir. E desenhei o seu abraço. Pensei:
dentro do coração há sempre um abraço. Passei a viver sobre-
tudo dentro do coração, como numa casa que não
pode ir-se
embora.
Eu entendi que o meu avô era como todas as mais belas
coisas do mundo juntas numa só. E entendi que fazer
-lhe
justiça era acreditar que, 
um dia, alguém poderia reconhecer
a sua influência em mim e, talvez, considerar de mim algo
semelhante. Com maior erro ou virtude, eu prometi tentar.
À noite, deito-me como uma semente na almofada húmida
do coração. Fico aninhado com a esperança de crescer esplen-
dorosamente por dentro do amor. No verdadeiro amor tudo
é para sempre vivo. E sei que, como as pedras, vivo da sede.
Quero sempre inventar a vida.
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