"Que te devolvam a alma homem do nosso tempo. Pede isso a Deus ou às coisas que acreditas: à terra, às águas, à noite desmedida. Uiva se quiseres, ao teu próprio ventre se é ele quem comanda a tua vida, não importa... Pede à mulher, àquela que foi noiva, à que se fez amiga. Abre a tua boca, ulula, pede à chuva. Ruge como se tivesses no peito uma enorme ferida, escancara a tua boca, regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA." (Hilda Hilst)



02/11/2011

"Dia de muertos"

...Oh, arco trêmulo e retesado,
Quando o punho violento da saudade
Exige que da vida os dois pólos
Curvados se aproximem!
Vezes e mais vezes, incessantemente,
Me lançarás, me perseguirás,
Da morte ao nascimento,
No doloroso caminho das configurações,
No maravilhoso caminho das configurações.”

(H. Hesse)

Quando estive em Oaxaca, México, tive a oportunidade de participar dos festejos do “dia de muertos”. Segundo o mito mexicano, nos primeiros dias de novembro os mortos têm a permissão divina para atravessar o portal que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos, visitar seus parentes e amigos (vivos) e com eles festejar a vida. Todos os estabelecimentos comerciais se enfeitam, geralmente com caveiras que aparecem confraternizando com os vivos em banquetes, tocando, dançando e cantando. Os mercados vendem doces em forma de caveira, e há até pães “de muertos“, feitos especialmente para essa data. Nas casas erguem-se belíssimos altares, construídos com flores, frutas, chocolates, bebidas, velas (que são acesas à noite), e às vezes até alguns objetos; nesses altares são colocadas comidas e bebidas que os mortos de cada família gostavam de consumir.
Nos festejos do “dia de muertos” acontece uma procissão dedicada à Nossa Senhora de Guadalupe (padroeira de Oaxaca, que corresponderia à Nossa Senhora de Aparecida para nós), e depois as pessoas se dirigem aos cemitérios onde estão enterrados os seus familiares.Os túmulos são decorados e cuidadosamente preparados para essa celebração, e todos ceiam sobre esses mesmos túmulos, num clima de grande festa, acompanhada até de fogos de artifício. No entanto, também se chora de saudades pelos que foram, pois não se trata de negar a dor da perda que a morte traz, mas se reconhece que a morte está incluída na “Roda da Vida” (“Roda de Cura” indígena) como uma de suas etapas: à morte segue-se o renascimento. Na verdade, essa grande festa constitui-se numa celebração da vida, que por trás do manto da morte se recria e adquire novas formas


Eu começo a minha tese de doutorado, e o meu livro Vol II: Mitologia Indígena e Arteterapia: A Arte de Trilhar a Roda da Vida, contando sobre essa minha experiência vivenciada durante um workshop do qual participei em Oaxaca: "Incubação de Sonhos", e comentando o sentido dessa voisão cíclica da vida para o homem de hoje. Conforme indígenas mexicanos me ensinaram lá, a Roda da Vida, ou “Roda de Cura”, representa a vida com suas sucessivas etapas, que se desenrolam em ciclos. Nessa roda, os quatro pontos cardeais são associados aos quatro elementos, a diferentes animais e cores, a diferentes fases da vida e de qualquer processo, indo da semente ao fruto colhido: cada fase de nossas vidas é comparável ao desdobrar-se da semente (nascimento) em fruto (velhice e morte), o que constitui-se num processo de transformação.
A vida de uma pessoa atravessa várias etapas (nascimento, adolescência, maternidade-paternidade, atuação social e profissional, morte, entre outras), e em cada uma delas há a oportunidade de aprendermos algo novo e importante sobre nós mesmos, sobre o outro e sobre o mundo à nossa volta. Esse aprendizado que as experiências de vida nos trazem, quando assimilado e integrado à nossa consciência, nos transforma, ampliando a nossa visão de homem e de mundo. E todo processo de transformação envolve a vivência de uma morte simbólica e de um posterior renascimento. Por saber disso, e para ajudar o homem a atravessar as crises que acompanham sempre esses processos de transformação, os povos ancestrais dispunham de rituais de iniciação e passagem.

Encontramos ainda hoje alguns desses rituais atuantes em nossa cultura (batismo, casamento, enterro, etc.), mas a maioria deles perdeu a conexão com um significado simbólico mais profundo do que se está vivenciando neles, constituindo-se nos dias de hoje, em sua maioria, em convenções vazias de seu sentido iniciático. Esses rituais tinham a função de favorecer o nosso crescimento através de um relacionamento significativo e auto-renovador com os diferentes ritmos e ciclos existenciais (estações do ano, plantio e colheita, nascimento e morte, casamento, puberdade, ofício, etc.), nos predispondo à abertura ao novo.

Como não dispomos mais de rituais para nos ajudar nesses momentos de crise que acompanham o nosso crescimento psíquico, a Arte pode nos oferecer a oportunidade de vivenciar esses momentos de forma mais integrada.


No México, a cruz tem flores em seus 4 cantos, ao invés da imagem do Cristo crucificado, simbolizando o néctar (a doçura) contido nos 4 pontos da Roda de Cura, que também é chamada da “Roda da Doce Medicina”, pois em todos os procedimentos indígenas de cura e de passagem de seus ensinamentos encontramos formas de expressão artística: canto, dança, narração de histórias, pintura, escultura..., ajudando-nos a extrair sabedoria, como néctar, de nossas experiências vividas, da mesma forma que o beija-flor se nutre do néctar das flores, e assim poliniza os jardins...

A vida é doce prá quem cultiva flores,
porque é delas que as abelhas retiram
os néctares de seu mel.

A vida é plena
prá quem, sobre seus túmulos, ergue altares,
fertilizando com suas lágrimas (como chuva)
suas semeaduras.

A vida faz sentido
prá quem se reconhece
nas tramas do próprio destino
e com seus fios tece horizontes...

A Vida encanta, acalanta, canta
prá quem dança, com alegria,
dentro da Roda da Medicina (Roda de Cura indígena)
fazendo da terra, da água, do fogo e do ar, remédios para suas
feridas (e prá quem se abre para fazer parcerias).

A Vida ilumina
quem acolhe seu devir de alquimista, transformando em ouro,
em tesouros, as pedras que encontra pelo caminho
(colocando-as, incandescentes, no centro do casulo de seus sonhos)
transmutando seus cestos de carga em sacolas de talismãs.

Oaxaca é aqui, é agora,
prá quem, a cada lua nova, se deita com o sol
e celebra, a cada lua cheia, a Vida que entrelaça todos os seres
e os impulsiona a renascer... “

(“Oaxaca”, minha autoria, 1999)

Um comentário:

Minha Terra Minha Gente disse...

Olá Minha querida mestra e terapeuta!

Não poderia vir em melhor hora essa sua postagem. Momentos de muitas transformações, incluindo morte e renascimento. Pssagens perturbadoras que comentarei com vc no dia 21.
Abraço com muito afeto
Marisa (de Champaign)