"Que te devolvam a alma homem do nosso tempo. Pede isso a Deus ou às coisas que acreditas: à terra, às águas, à noite desmedida. Uiva se quiseres, ao teu próprio ventre se é ele quem comanda a tua vida, não importa... Pede à mulher, àquela que foi noiva, à que se fez amiga. Abre a tua boca, ulula, pede à chuva. Ruge como se tivesses no peito uma enorme ferida, escancara a tua boca, regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA." (Hilda Hilst)



22/01/2009

DE-CORAÇÃO... ou: as mudanças necessárias e os rituais de Ano Novo




"Esse é o lugar onde você poderá vivenciar e trazer à luz aquilo que você é e aquilo que poderá ser. Este é um lugar de incubação criativa. A princípio, você até pode achar que nada acontece. Mas se você tem um espaço sagrado e o utiliza, por fim alguma coisa acontecerá."
(J. Campbell)
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Na virada de 2007 para 2008 eu decidi mudar de casa. Eu morava num lugar bastante acolhedor e agradável, em que eu me permiti, durante os 10 anos em que morei lá, pintar eu mesma as paredes utilizando diversas cores, texturas e técnicas. Cheguei até a fazer desenhos com meus dedos numa parede coberta com massa corrida (enquanto ela estava ainda úmida), e a cobrir uma das paredes do corredor com chita! O meu toque pessoal estava presente em cada canto, e por opção eu não tinha na casa nenhum móvel que eu mesma não pudesse deslocar de um lugar para outro. E quando enfim cheguei a uma arrumação e distribuição de cores que me satisfizeram plenamente, tive a consciência de que era hora de mudar de casa...
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Pois é isso mesmo, por mais paradoxal que nos pareça, quando uma coisa está pronta, está morta, e é como o fruto colhido da Árvore da Vida quando concluímos algum ciclo: o saboreamos, extraindo dele o aprendizado e a energia necessária para darmos o próximo passo em direção ao nosso crescimento, e então encontramos dentro dele sementes, que representam projetos e possibilidades que podem e devem ser trazidas à realidade e traduzidas em novas configurações. Morre o fruto, que renasce através de suas sementes. E assim a nossa vida caminha, fresca e cheia de vigor, renovando-se sempre que abrimos espaço ao novo que pede passagem para que ela se recrie, pois o que está vivo está em movimento, em processo de mudança contínua, como um rio que não pode deter o seu curso.
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Então eu me dei conta de que o próximo passo consistia em escolher uma nova morada onde plantar os meus sonhos que, como essas sementes, estavam ali, bem na palma da minha mão, enchendo o meu coração de esperança e de uma nova luz que insistia em se fazer notar e em se presentificar com sua manifestação... Eu precisava agora trazer a minha nova face à tona, e de uma casa que espelhasse o meu novo momento de vida, em que o sol entrasse por todas as janelas e banhasse generosamente todos os cômodos... e que não tivesse muitas paredes! Hoje escrevo a vocês dessa nova casa (inacabada, claro) em que vou tecendo em cada detalhe uma nova trama, um novo desenho de mim mesma, de meus anseios e aspirações. E foi só mudar de casa e começar a de-corá-la que na mesma semana começaram a entrar na minha vida novas pessoas e novas gestalts existenciais, instaurando uma nova dinâmica em meu modo de viver e me relacionar.
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Ao mudar de casa, eu dei a mim mesma um novo ponto de partida, assim como fazemos nos rituais de Ano Novo, ou mesmo nas nossas festas de aniversário, nas quais podemos supor que o bolo representa a vida sendo saboreada, fatia por fatia, nos nutrindo e trazendo doçura ao mesmo tempo... Esses rituais estão enraizados nos antigos rituais de renovação do tempo praticados pelos povos ancestrais, em que havia um retorno à unidade anterior à Criação, os quais baseavam-se na concepção de que a vida em sua plenitude não pode ser restaurada, mas sim recriada através do retorno ao ponto em que surgiu das mãos do Criador, com todo o seu esplendor. Diante disso, os mitos de criação e de origem eram contados e revividos não só nessas cerimônias, mas também antes de qualquer construção: de uma casa, um templo, um objeto.
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Os povos ancestrais consideravam, por analogia, que qualquer criação é uma repetição, em escala reduzida, da criação cósmica do início dos tempos. Podemos pensar na nossa casa como esse “espaço sagrado” em que criamos o nosso mundo, trazendo para dentro dele o que mais valorizamos, e que reflita quem somos e em que direção queremos caminhar e encaminhar a nossa vida. E isso tem um efeito muito poderoso sobre nós, pois nos tira de uma condição passiva diante do nosso destino, colocando-nos numa atitude ativa, posicionando-nos como co-criadores de nossa realidade, pois se podemos considerar que o mundo é a nossa casa, podemos também pensar a nossa casa como um micro-mundo que reflete o nosso mundo interior e interfere no mundo à nossa volta.
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O Ovo do Mundo aparece em vários mitos de criação como a substância básica da qual o universo é formado. Os ovos precisam ser chocados e abrigados num ninho que os contenha e proteja durante sua maturação. O feto necessita do calor e contenção uterina para se transformar numa criança completa. A semente é colocada dentro da terra até que possa irromper como planta e romper o solo em direção ao céu. Para que um processo se realize e se torne visível como forma posta no mundo, precisamos contar com a ação do calor do fogo, da energia amorosa que impulsiona a passagem do não-ser ao ser, do latente ao manifesto, bem como com a receptividade de um continente para o seu desenrolar.
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Héstia é a deusa que personifica o Fogo Sagrado que era colocado no centro dos altares, das casas e das cidades gregas, representando o fogo que nunca pode se apagar, simbolizando o fogo que vem do cento da terra e a lareira do universo. E o centro é o local para onde convergem e de onde irradiam-se as 4 direções (Norte, Sul, Leste, Oeste), ordenando o mundo e o transformando numa unidade significativa. Como calor, promove a afetividade, tecendo relações e criando vínculos. Favorecendo o amadurecimento da vida contida dentro do ovo, expressa a possibilidade de harmonização e integração amorosa de pontos de vista divergentes, congregando essas diferenças em torno de um princípio maior e mais abrangente, ou seja, o que é sagrado para cada um de nós.
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Assim como toda semente necessita de um vaso que a acolha e lhe forneça os nutrientes e condições propícias para a sua germinação, podemos pensar e buscar criar na nossa casa um ambiente que se assemelhe a um “vaso sagrado” (as mulheres de tradição indígena norte-americana consideravam os seus úteros como um vaso sagrado, segundo J. Sams), um espaço acolhedor e repleto do calor necessário para que os nossos potenciais floresçam e preencham a nossa vida com aromas e cores, tornando-a bela, um deleite para os olhos e um ninho para os nossos sonhos de felicidade, amor e auto-realização...
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(Esse texto foi escrito por mim a pedido de uma nova revista que iria ser lançada - Mais Sim - para a seção de decoração, que se chamaria: De-coração. Como o lançamento dessa revista acabou não acontecendo, compartilho esse texto com vocês aqui)

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