Esquecer-se da própria origem divina equivale à saída do Paraíso, o que corresponde à perda da “participation mistique” primitiva. Por outro lado, faz parte do processo de criação e expansão da consciência a sua separação e oposição, como faceta complementar, do Self, para a ele religar-se, num novo patamar de consciência, a cada final de ciclo e começo de um novo. A religiosidade consiste e se baseia na busca de um significado maior do que a consciência consegue alcançar com sua visão limitada, que passa pelo plano pessoal e estende-se ao transpessoal, reunindo o ser humano ao Cosmo e conduzindo-o a assumir o seu lugar e o seu papel no plano divino da criação. Isso se contrapõe aos dogmas e ao conceito tradicional de religião (como seita), pois pressupõe liberdade (livre arbítrio), experiência pessoal com relação aos aspectos numinosos do ser (divindade), envolvimento ativo com o próprio processo de expansão da alma e abertura à Vida, além de assumir a responsabilidade sobre o processo de crescimento próprio, que Jung denominou de processo de individuação.
Um dos meios para se vivenciar a religação com a totalidade é através do êxtase, como num orgasmo em que perdemos momentaneamente a noção de nossos contornos e nos lançamos no leito ondulante da energia cósmica, revivendo no plano microcósmico a relação hierogâmica entre o casal sagrado (Pai Céu e Mãe Terra, Yin e Yang, Shiva e Shakti, Úrano e Géia,...), unificando e recompondo aspectos “desgarrados” ou “desagregados” de nossa psique, vivenciando uma pequena morte seguida de um renascimento a partir desse mar cósmico. E Dioniso é, na mitologia grega, o deus do êxtase, da transformação e do entusiasmo - a palavra entusiasmo significa: estar pleno de Deus, e é isso que Dioniso nos propunha e ensinava através dos seus rituais.
Como Zagreu, Dioniso criança é capturado pelos Titãs, sendo morto, esquartejado, cozido e devorado. Da mesma forma, nos rituais dedicados a ele, despedaçavam-se touros, cujo sangue era bebido e as carnes comidas pelos adeptos. É claro que tudo isso não deve ser levado ao pé da letra, mas o mito só pode ser compreendido e apreendido através da perspectiva simbólica, como tão bem observa o mitólogo (de quem tive a honra de ter sido aluna) Junito Brandão, em seu livro: Mitologia Grega:
“O despedaçamento do touro, símbolo da força e da fecundidade, se de um lado representava os sofrimentos de Dioniso, dilacerado pelos Titãs, de outro, o fato de os e as Bacantes lhe beberem o sangue e lhe comerem as carnes, pelo rito da omofagia, inseparável do transe orgiástico, configurava a integração total e a comunhão com o deus. É que os animais, que se devoravam, eram a hierofania, a encarnação do próprio Dioniso. De outro lado, despedaçando animais e devorando-os, os devotos de Dioniso integram-se nele e o recompõem simbolicamente, o que, consoante Jung, configura a conscientização de conteúdos divididos.”
É interessante comparar esses rituais aos da missa católica, em que bebe-se o sangue de Cristo - representado pelo vinho, invenção de Dioniso! - e come-se o seu corpo, simbolizado pela hóstia que é servida aos fiéis. Cristo assim multiplica-se, morre para renascer em cada ser humano, a partir da comunhão do homem com o divino e da descida de Deus no coração do próprio homem. O mesmo mistério com diferentes roupagens...
Dioniso também era um deus agrário, tendo nascido pela segunda vez da coxa de Zeus - símbolo da árvore, do falo da terra, da natureza, da fertilidade e da riqueza que brota na terra (no reino dos vivos) a partir do seu interior (do reino dos mortos). Em certo momento de seus rituais era servida a Hermes uma panspermía - sopa que mistura todas as espécies de sementes. Nesses rituais, o homem se depara com a necessidade de atualizar, acomodar e unificar os aspectos divinos e instintivos que traz em si (como filho nascido do casamento sagrado da Terra com o Céu), transformando-se numa expressão singular dentro do Grande Círculo da existência.
No vinho, criado por Dioniso para favorecer esse estado de "loucura sagrada" (em oposição à loucura que pode abater o homem quando nega a si mesmo, cindindo-se e não abraçando amorosamente a sua sombra, e assim não integrando-a à consciência), em que podemos transcender os limites do ego para abarcar os outros aspectos (inconscientes) de nossa constituição psíquica, a Água, feminina, e o Fogo, masculino, são relacionados e sintetizados, expressando simbolicamente o grande mistério da conjunção dessas substâncias aparentemente incompatíveis (pois o vinho, assim como a experiência amorosa, é como uma água ardente, um sentimento que aquece o corpo e a alma, promovendo a sua fusão...). Nas festas dedicadas a Dioniso, os homens se embriagavam, dançavam, ultrapassavam sua condição humana através do êxtase e uniam-se ao deus, saíam fora de si para serem preenchidos e abrirem espaço para a divindade pelo processo do entusiasmo: “o entusiasmo é ter um deus dentro de si, identificar-se com ele, co-participando da divindade”, o que acarretava uma “explosão de liberdade e, seguramente, uma transformação, uma liberação, uma distensão, uma identificação, uma kátharsis, uma purificação.” (Junito Brandão).
Dioniso era um deus que, ao olhar para o homem, acendia-lhe a chama de sua divindade, a qual era vivenciada e incorporada (sem, no entanto, negar-se a própria humanidade e a participação dos instintos na vida psíquica). Esse deus nos chama a olhar no espelho de nossa alma, a trazer à luz e encarar (e encarnar) o melhor e o pior de nós mesmos, para que a tríade animal - homem - deus (corpo – alma – espírito) possa expressar-se de maneira fecunda, e os três níveis: ctônico, terrestre e celeste (instintivo, consciente, arquetípico), transpassados pelo eixo de ligação entre a Terra e o Céu (ego e Self, Natureza e Espírito), possam ser entrelaçados e harmonizados, levando a uma auto-renovação, ao questionamento de pressupostos e crenças (dos preconceitos) e à aquisição de uma maior amplitude existencial. Nesse sentido, Dioniso é, da mesma forma que Jesus Cristo, um deus das sínteses, da alteridade, promovendo o relacionamento igualitário entre as polaridades, confundindo e esfumaçando seus contornos, mostrando sempre o outro lado da moeda, colocando-nos diante dos “outros de nós” para que os opostos possam se fertilizar mutuamente, ocupando seu lugar no desenrolar da Criação.
O interessante de tudo isso, e o que nos mostra (pois o mito é sempre atual, presente como uma realidade transcendente e perene na nossa alma) tanto Dioniso quanto Jesus Cristo, é atentarmos para o fato de que cada mito das diferentes culturas nos ensina mais sobre quem somos, para além de nossas máscaras, e nos ajuda a amplificar a experiência de estarmos vivos, extraindo da vida o melhor dos vinhos: o néctar que nos conecta com a nossa essência ancestral, que nos faz divinamente humanos e humanamente divinos (como tão bem coloca Marcos Ferreira Santos, professor de Mitologia Comparada na FEUSP, em um de seus artigos), e por isso podemos reconhecer que a expressão do divino está presente em cada ser e em cada faceta da criação, transformando o fato de estarmos aqui num motivo, por si só, de uma constante celebração!!!
2 comentários:
seu texto é belíssimo, pura arte em palavras e em imagens, como de hábito!
por alguma sincronicidade, escrevemos no mesmo dia sobre temas muito parecidos, veja aqui: http://www.unzuhause77.blogspot.com/
no meu caso, me veio em forma de intuição desorganizada uma reflexão sobre os nexos entre a loucura e o ofício do psicólogo; e meu texto ganha contexto totalmente diverso, e mais fundo, à luz do seu texto!
bjoooooooooo
Caio
Querido amigo, é sempre um grande prazer lê-lo, e é sempre bastante alentador encontrar parcerias em olhares que buscam profundizar a experiência tão contundente que é estar encarnado num corpo e ter de dar conta das vertiginosas viagens da alma através de sua própria imensidão, perplexos diante de sua falta de fronteiras definidas... a loucura sempre espreita-nos nesses momentos em que saltamos o abismo em direção a algo maior e mais significativo do que ficar olhando através da moldura restrita e aprisionante do ego – e nesse caminho Dioniso é um valioso e amoroso guia, pois nos conduz à inteireza de ser corpo e alma sintetizados nessa Grande Obra que é dar conta da nossa existência e nossa vocação para co-criadores desse mistério insondável que é estarmos aqui, vivos, visceralmente, em que a única saída para que o corpo não entre em colapso e combustão quando conjugado com a alma e através dela em contato com a chama sublime e arrebatadora do espírito – que é justamente o que nos confere vida – é a entrega, sem nenhuma garantia, aos seus desígnios: seguir o seu chamado é a nossa única salvação, por isso Jung chamava a individuação de caminho de salvação... e foi esse o caminho exemplar trilhado por Jesus Cristo... ele deixou pistas que podemos seguir, mas cada um terá a sua própria trilha para abrir nessa mata, e aí podemos contar com a ajuda da espada guerreira e com a engenhosidade e criatividade de Ogum, com a amorosa acolhida de Oxum, com a sábia condução de Ísis no processo de morte-renascimento que então atravessaremos, e assim por diante... estamos repletos de mestres e guias amorosos e compassivos de todas as culturas em quem podemos nos apoiar, pois nunca embarcamos sozinhos nessas viagens – e, além do mais, nem nos seria permitido, fazer isso seria literalmente enlouquecer!!! Por isso, quem não seguia o chamado de Dioniso enlouquecia, mas quem de boa vontade participava desse processo de auto-transformação que ele propunha e ensinava, se curava da ferida do “pecado original” de se pensar separado da totalidade da Vida. Nesse sentido você tem toda razão: quem segue o ofício de psicólogo foi convocado por Dioniso, e está nesse caminho para não enlouquecer (mas aí também corre o risco de projetar a sua própria loucura no outro, no paciente, o que seria uma cisão de qualquer forma, e aí viveria a sua loucura através do outro, e infelizmente muitos psicólogos e médicos incorrem nesse abuso de poder, o que é uma outra forma de enlouquecer, já que o eu e o outro não são instâncias separadas, mas complementares e interconectadas, mas isso já é uma outra história...). Eta profissão em que andamos sempre ou quase sempre no fio da navalha rsrsrs
Há sim um preço a se pagar nessas viagens ao barqueiro que nos conduz na travessia de mundos, fronteiras e limiares, e o preço é proporcional ao compromisso com a fidelidade à nossa verdade: a de que só podemos ser alguém de verdade, e dizer-nos humanos, quando o ego se coloca em sua condição de servidor do Self -, e essa verdade tem sempre muitas faces, as quais nem sempre sorriem para nós rs... mas sempre são a expressão de mestres nos ensinando algo valioso, resgatando-nos do abismo sobre o qual pairamos e nos reconduzindo à nossa própria humanidade, conferindo-nos humildade diante da explendorosa paisagem que nos foi permitido vislumbrar... por isso dessas travessias sempre trazemos preciosidades transmutadas numa nova face de nós mesmos, e num novo olhar sobre o outro e sobre o mundo!
E você tem toda razão também quando diz que não faz sentido falar disso, ou de qualquer outro assunto que diga respeito ao humano, se não assentamos nossas palavras no vivido... estou nessa contigo também!!! Por isso te tenho como um querido e muito caro e precioso amigo! Obrigada por sua interlocução, ela é sempre muito muito bem-vinda!!!
Postar um comentário